Mulheres excepcionais

domingo, 11 de março de 2012

A viagem a Calcutá

Maria do Carmo Alvares em Calcutá, em Fevereiro de 2012
Mãe, de quatro filhos (de 22, 19, 13 e 9 anos), Maria do Carmo Alvares comprou dois bilhetes de avião e em Fevereiro partiu com a filha mais velha para Calcutá para durante duas semanas trabalharem como voluntárias nas Missionárias da Caridade, a instituição criada por madre Teresa. Era um chamamento a que sentia ter de responder. No regresso percebeu porquê.


Quando conheceu a Índia?
Há quase sete anos, eu era a única de um grupo de amigos que não queria ir à India – não queria ver miséria, pobreza... O meu marido é descendente de goeses (o meu sogro nasceu lá) e eu só queria ir a Goa porque sabia que era mais leve.
Comecei por descobrir a espiritualidade dos indianos na subida do Ganges, em Varanasi, que representa desde o nascimento até à pira da morte, que está no Norte, com todas as correntezas, que são as dificuldades que vamos encontrando. O nascer do sol a bater nos Ghats [escadarias que dão para o rio Ganges], os lençóis lavados e estendidos pelos homens, as pessoas a lavarem-se naquela água que apesar de ser imunda para eles é pura – tudo aquilo começou-me logo a fascinar. 
Fizémos o Rajastão todo, fomos a Deli, Bombaim e comecei-me a apaixonar por aquele povo. Tudo me atraía: a lixeira, o olhar profundo, aquele sorriso, as cores dos saris, a loucura de se transportarem em motas que podiam levar cinco pessoas e um colchão. Eu dirigia-me a todas as crianças e a todos os velhos. Sentia que tinha ali uma missão. Demorou uns anos a compreender qual. Aliado a isto, a obra da madre Teresa sempre me fascinou porque ela foi buscar o mais pobre dos pobres. Durante anos eu sentia que tinha de voltar à India, que a India me chamava.
Por que levou a sua filha consigo?
A minha filha, de 22 anos, também quis ir. Achei que lhe ia fazer bem, ver outras realidades e que nos iriamos ajudar mutuamente. E em Fevereiro fomos as duas.
Já conhecia o trabalho das Missionárias da Caridade? 
Já tinha visitado o centro das Missionárias da Caridade em Lisboa, em Chelas, de idosos. Há outro em Setúbal, para crianças deficientes, que visitei em Dezembro. Estive bastante tempo a falar com a irmã Chris, que é escocesa. Estava tudo muito arranjadinho; as camaratas das meninas tinham sido alvo de uma remodelação pelo programa da SIC “Querido mudei a casa”.
Eu andei num colégio de freiras, trabalho [em voluntariado] no Movimento Apostólico de Schoenstatt [movimento apostólico mariano fundado em 1914], por isso também lido com padres, com irmãs, mas ali encontrei uma paz diferente. 
Como conseguiu trabalhar nas Missionárias da Caridade em Calcutá?
É fácil. Basta dirigir-se à casa-mãe, às segundas, quartas e sextas. Às 3 da tarde há a inscrição dos voluntários. Eu cheguei a uma quinta-feira a Calcutá, que é o dia de folga na instituição. O nosso hotel era ao pé da casa-mãe da instituição. Na sexta dirigi-me lá e disse que me queria inscrever. Levaram-me para outro centro, onde fiquei a trabalhar. Pode-se escolher a língua em que se quer receber a informação acerca do funcionamento e eu escolhi o inglês. Falámos com a sister Mercy Mary, que é a responsável pelo voluntariado, e ela perguntou-nos qual o centro para onde queríamos ir. Fizemos a entrevista juntas; acharam muita graça sermos mãe e filha, porque não é usual nos voluntários. Também não é usual as pessoas das minha idade fazerem voluntariado – a maior parte tem entre 18 e 30 e poucos anos. Pedimos para ficar com as crianças deficientes. E no sábado começámos a trabalhar.
Como eram os seus dias de trabalho?
Cuidava das crianças. Entravamos às oito. Havia missa às seis da manhã, para quem quisesse. Depois tínhamos o pequeno-almoço dos voluntários: chai [chá com leite e especiarias], umas fatias de pão sem nada e uma banana, que foi diminuindo de tamanho. Depois cada um partia para o seu centro. Começávamos com a oração do voluntário, uma Ave-maria com a irmã, descalçávamo-nos e escolhíamos uma criança, todos os dias uma diferente. Víamos o dossiê, para saber o que era melhor fazer com ela, a que reagia melhor, o que podíamos fazer fisicamente com ela. Dávamos o pequeno-almoço, o almoço (o que podia demorar bastante tempo), mudávamos as fraldas, deitávamos as crianças nas caminhas… Trabalhávamos como nos tinham ensinado.
Havia o intervalo das voluntárias, que era passado num dos três terraços, onde estendiam as roupas das crianças. Ali estávamos a tomar chai e algumas bolachas, com voluntários de todas as nacionalidades: conversávamos acerca do que as levou ali, o que fazem nos seus países, o que pensam fazer futuramente. É muito feio ter inveja, mas eu tinha inveja daquelas que diziam que já lá estavam há um mês e iam ficar mais três. 
Não fez turismo?
Foi sempre a trabalhar. Passeámos um pouco, mas Calcutá também não tem muito para ver. Na quinta-feira, que é folga, fomos visitar um centro de leprosos. O nosso hotel era em Bose Road, que é o bairro dos voluntários. Íamos ao Spanish Café, onde se encontram os voluntários todos. 
Pensa que valeu a pena, do ponto de vista da instituição, só aqueles quinze dias? 
A pessoa que vai a seguir, vai prosseguir o trabalho que eu fiz. O amor que eu dei há de ser diferente do amor da pessoa que vem a seguir, mas há amor. O que interessa é que nos demos e demos o melhor que temos em nós.
O seu filho perguntou-lhe por que, em vez de partir, não doava o dinheiro das viagens a essa instituição. Faço-lhe a mesma pergunta.
Claro que o dinheiro é importante, mas mais importante é o que nós recebemos desde pequenos e isso não adquirimos com dinheiro, mas com o amor que recebemos dos que nos rodeiam! E é claro que tenho intenção de ir trabalhar com as Missionárias da Caridade em Setubal!
Emocionalmente, não lhe foi difícil lidar com essa realidade?
Consigo-me distanciar. Fiquei tão feliz, tão feliz, de encontrar uma instituição que vai buscar estas pessoas às ruas, que nunca senti tristeza, ou horror, mas sempre um amor tão grande, que nem me chocava a realidade com que lidava. Ao fim de uma semana cheguei à conclusão que o meu maior choque foi pensar que me podia ter chocado com alguma coisa. Chorei várias vezes de emoção, por estar ali e me dar completamente naqueles 15 dias. 
É muito enriquecedor para nós e para as crianças, conseguir pequenas vitórias, como as crianças baterem as palmas ou dizerem adeus. Como uma miúda que quando chegámos nem se quer se ria, não conseguia fixar os olhos em nós, e uma semana depois já fazia barulhinhos de excitação. Acordava cheia de vontade de estar novamente com as crianças. Tenho pena de não poder lá ficar 3, 4 ou 5 meses. 
Que experiência mais a marcou?
A experiência mais forte foi a visita ao centro de leprosos num bairro fora da cidade, muito mais pobre do que Calcutá. Era uma casa muito limpa. Fomos visitar as camaratas dos homens e das mulheres. Estavam sentados nas camas, não se escondiam, uns só com um coto, outros sem dedos nas mãos ou nos pés, ou com os dedos atrofiados, havia rostos desfigurados e, no entanto, aceitando a sua vida, o seu karma, com muita serenidade e dignidade. Os olhos brilhantes, o sorriso até às orelhas, saudando-nos com as mãos juntas: namasté. Aquilo foi uma pancada tão forte no meu coração, que desatei num choro. Agradeci imensamente a Deus por ter enviado uma Madre Teresa, uma santa na terra. Só espero que esta obra continue por centenas de anos. 
E a experiência mais penosa?
Todas as recordações são boas.
Que ensinamentos trouxe consigo?
Quando cheguei até o barulho das ruas de Calcutá me fazia falta. O silêncio de Lisboa é que era ensurdecedor. Senti que me tornei uma criança e que qualquer pessoa que passava por mim me dava uma lição: pode-se ser feliz sem nada. Por que é que a India me chamava? Só desta segunda vez, quando regressei a Portugal, percebi o porquê do chamamento da Índia. Onde consegui encontrar uma paz diferente foi na Índia, em Calcutá. Há uma frase do Steve Jobs [fundador da Apple] que é: “cada sonho que você deixa para trás é um pedaço do seu futuro que deixa de existir.” Eu tive mesmo de realizar este sonho, para o meu bem, para o bem daqueles que me rodeiam, para o meu futuro, pois vim mais calma. Hoje tenho mais serenidade para aceitar mais as coisas, não dar importância a coisas sem importância. 
Vai voltar?
Tenho um lema de vida que é: tudo para todos. Às vezes fico cansada comigo própria porque tudo o que me pedem eu não digo que não, quero corresponder a tudo. O que senti na Índia e naquela instituição é que eu dei, mas recebi tanto mais! Vemos as crianças a brincarem com o que têm, as pedras ou um vitelinho que enfeitam com missangas, e são felizes. 
É uma lição de vida todos os dias. Porque não há tristeza, não há rancor, não há ódio, só há amor, só amor. Consegui realizar o sonho que tinha e ficou-me o bichinho. É para voltar em Fevereiro do próximo ano.

2 comentários:

  1. Querida amiga, fico feliz que tenhas realizado este teu sonho e também que aquelas crianças tenham tido o previlégio de ter privado contigo!!!!de lhes teres dado um bocadinho de ti! Beijo
    Sofia Salema

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  2. Extraordinária esta experiência de vida, esta entrega plena de amor pelos outros. Deve ser maravilhosa a sensação de liberdade e paz que se sente depois de ter realizado um sonho desta dimensão...Eu não poderia fazê-lo, pois não tenho dinheiro para a viagem, mas só pela descrição já amo essas crianças essas pessoas tão carentes, e penso que as minhas presses chegarão até eles pela Virgem Maria a quem peço para eles proteção e gente que os ajude e ame constantemente. Ainda existem MULHERES E HOMENS extraordinários neste mundo. Obrigada a todos eles. Beijinho à doutora Isabel por colocar aqui este tão perfeito e lindíssimo testemunho.

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